No (suposto) crime de
homicídio praticado na (suposta) vítima Eliza Samudio, que teria (supostamente)
o envolvimento do ex-goleiro do Flamengo, Bruno, existe ou não a possibilidade
de processo e julgamento sem a existência de um cadáver?
Um caso que tem gerado enormes
debates na
imprensa ‘leiga’ (aquela não voltada especificamente para assuntos jurídicos)
diz respeito ao processo envolvendo o (suposto) crime de homicídio praticado na (suposta) vítima Eliza Samudio, que teria (supostamente) o envolvimento,
dentre outros, do conhecido jogador de futebol, o ex-goleiro do Flamengo,
Bruno.
O objetivo do presente texto
é analisar a possibilidade (ou não) de um crime de homicídio ser processado e julgado sem a existência de um cadáver,
evidentemente que analisando apenas e tão somente o que consta da Lei,
sem qualquer vinculação a este (ou qualquer
outro) caso concreto.
O Código de Processo Penal,
de maneira impositiva, é
claro ao dispor no artigo 158:
“Art. 158 – Quando a infração deixar vestígios, será
indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não
podendo supri-lo
a confissão do acusado”.
O crime de homicídio é um exemplo
claro de aplicação deste dispositivo, haja vista que,
regra geral, deixa, por
exemplo, sangue e cadáver visíveis,
aptos à produção da referida prova.
No caso, estamos diante de
uma hipótese de prova taxada outarifada, ou seja, aquela em que a decisão do magistrado deverá
necessariamente estar ligada ao valor imposto pela Lei, sob
pena, via de regra, de nulidade absoluta:
“Art. 564 - A nulidade ocorrerá nos seguintes casos:
(...).
III – por falta das fórmulas ou dos
termos seguintes:
(...).
b) o exame
do corpo de delito nos
crimes que deixam vestígios, ressalvado o disposto no Art.
167”;
A consequência é evidente:
a Lei, determina, estabelece, impõe, não dá margem a qualquer dúvida ou
interpretação: ocorrerá a nulidade da persecução criminal na falta desta.
Ocorre que o próprio
Código de Processo Penal, nos casos de crimes que deixam
vestígios, expressamente, estabelece que quando estes últimos desaparecerem,
o exame de corpo de delito pode ser suprido, apenas e
tão somente por um único meio de prova,
qual seja,a testemunhal (CPP, arts. 167):
“Art. 167 - Não sendo
possível o exame de corpo de delito, por haver em desaparecido os vestígios, a prova testemunhal
poderá suprir-lhe a falta”.
Em outras palavras, não sendo possível a realização do corpo de delito por
haverem desaparecido – e não por não terem sido realizados
em prazo adequado – a prova testemunhal poderá, então, suprir tal hipótese.
O que muitas
vezes se verifica
na vida prática, é que sob
o errôneo, equivocado e frágil argumento da mera existência
de testemunhas no
caso concreto,aliadas muitas vezes a uma confissão inquisitorial do acusado (não ratificada em juízo, pois muitas vezes existem
indícios sérios de tortura na fase policial),bastaria para o prosseguimento da ação penal e até mesmo eventual
condenação, sob o fundamento de que o artigo 167 do Código de Processo Penal estaria
atendido.
Em nosso entendimento,
entretanto, nunca, jamais, em
tempo e momento algum, tal linha de raciocínio pode prevalecer,
uma vez que a real intenção do artigo 167 do Código de Processo
Pena lé o pleno – e não um mero e formal – suprimento
da regra geral (CPP, art. 158).
O que muitas
vezes se
verifica – em especial no meio policial – é a existência das chamadas ‘testemunhas de assinatura’,
ou seja, aquelas não presenciaram o fato criminoso, que não raras vezes
absolutamente na dasa bem da investigação, e apenas estão presentes para ‘ratificar’ a assinatura do indiciado
no ato da confissão inquisitorial.
É
mais que evidente, entretanto, que
tal situação não pode, sequer em tese, ser
considerada válida para os fins doartigo167doCódigodeProcessoPenal.
É que além de não
suprir a exigência legal, a situação ainda procura,
de maneira muito nítida,
burlar justamente o que o artigo 158 do mesmo Diploma busca afastar:
que apenas a confissão sustente a persecução penal.
Em outras palavras, não
basta que as testemunhas nada saibam de concreto sobre o fato e / ou façam referência apenas e tão
somente à confissão, pois, neste caso,ocorrerá ilegal e lamentável desrespeito (indireto) a expresso mandamento legal (CPP, arts. 158,
167 e 564, III, ‘b’).
Textos relacionados
É absolutamente imperioso, para a correta interpretação da exceção legal, que
as testemunhas tenham sido presenciai sao fato,
merecendo destacar o respaldo doutrinário do eminente FERNANDO DA COSTA TOURINHO
FILHO (“Código de
Processo Penal Comentado”, 12ª ed., fl. 532/533, 547/549 ed.
Saraiva, 2009):
“Corpo de delito.
Exame: direito e indireto. (...).
Se duas ou três
pessoas viram, no rio Amazonas, alguém decepara cabeça de outrem, não há dúvida
que ocorreu um homicídio. Mas, como proceder ao exame, se as águas levaram o
corpo de delito? Nesse caso, relatando as testemunhas o que
viram, estará feito o exame indireto. É
preciso, contudo, que elas tenham visto os vestígios. Se por um
acaso não se fizer o exame, direto ou indireto, anulidade é tão grande que
fulmina todo o processo, nos termos do art. 564, III, ‘b’ do CPP. Se faltar o
exame direto, lança-se mão do indireto, como salienta o art. 564, III, ‘b’ do
CPP. Mas senão houver nem um nem outro, a nulidade é absoluta. (...).
Quis e quer dizer o legislador que a ausência do exame direto de corpo de delito
nos crimes que deixam vestígios carreta nulidade a menos que se proceda ao
exame indireto... (...)”.
(...).
Exame de corpo de
delito. (...) é necessariamente indispensável.
E a tal ponto chega essa indispensabilidade que o art. 564, III, b, do CPP diz
que haverá nulidade se não for feito,
nesses crimes, o exame de corpo de delito, ou, na impossibilidade, quese
observe,ao
menos o disposto
no art. 167. (...) o denominado
exame indireto de corpo de delito, realizado por outros meios, notadamente pela
prova testemunhal. Nesses casos, é
preciso que a testemunha informe sobre o que efetivamente viu,
para que se possa, assim, suprir o exame direto de corpo de delito. Não
é o fato de dizer que viu a vítima entrando neste ou naquele local,
onde possivelmente estava ao acusado, não é o fato de afirmar ter sabido
da própria vítima o que aconteceu, que constitui o exame
indireto. A autoridade não está investigando se a vítima foi ou não neste ou
naquele local, se disse ou não o que com ela aconteceu. Simplesmente
vai indagar da testemunha se ela viu o corpo de delito, isto
é, os vestígios materiais deixados
pelo crime. (...),se
viu a vítima ensangüentada ser jogada no mar, ou
situações semelhantes (...)”.
O festejado magistrado
paulista GUILHERME DE SOUZA NUCCI em seu autorizado magistério doutrinário (“Código de Processo Penal Comentado”,
8ª ed., pág. 364/365, 377/378, ed. RT, 2008) é no mesmo sentido:
“4. Diferença entre
exame de corpo de delito e corpo de delito: (...).No artigo em comento exige-se,
para a infração que deixa vestígios, a realização do exame de corpo de delito,
direto ou indireto, isto é, a emissão de um laudo pericial
atestando a materialidade do delito. Este laudo pode ser
produzido de maneira direta – pela verificação pessoal do perito – ou de modo
indireto – quando o profissional se serve de outros meios de provas. (...). O
exame de corpo de delito é sempre produzido por peritos, de maneira direta ou indireta,
como já abordado. O corpo de delito,
no entanto, pode resultar de forma direta ou indireta. (...).
Quando o cadáver se perde, contando-se com a mera narrativa
de leigos que, de longe, viram o réu desferindo tiros na vítima, por
exemplo, caindo o corpo no mar e
perdendo-se, há a prova indireta da ocorrência
da morte. É o corpo de delito indireto (...).
(...).
5. Confissão e corpo
de delito: a lei é clara ao mencionar que a
confissão do réu não pode suprir o exame de corpo de delito,
direto ou indireto. A única fórmula legal válida para preencher sua falta é a
colheita de depoimento de testemunhas, nos termos do art. 167
(...). Como já se mencionou, trata-se de um tema desenvolvido com especial
cuidado pelo legislador, tendo em vista as inúmeras razões que podem conduzir
uma pessoa a confessar falsa ou erroneamente, colocando em grave risco a
segurança exigida pelo processo penal. Assim, se o cadáver, no
caso do homicídio,desapareceu, ainda
que o réu confesse ter matado a vítima, não
havendo exame de corpo de delito, nem
tampouco prova testemunhal, não se pode punir o autor.
A confissão isolada não presta para comprovar a existência das infrações que
deixam vestígios materiais.
(...).
39. Alternativa do
exame do corpo de delito: (...) pode ser
que os vestígios tenham desaparecido (...). Nessas situações, (...) quando o
cadáver é perdido por qualquer causa (...), inexistindo possibilidade dos
peritos terem
acesso, ainda que indireto ao objeto a ser analisado, pode suprir o exame
de corpo de delito por testemunhas.Pessoas
podem narrar ao juiz que viram, v.g., o
momento em que o agente desferiu tiros na vítima e esta caiu em um
despenhadeiro, desaparecendo nas águas do oceano.
Baseado nisso, forma-se a materialidade do homicídio, permitindo-se, então, a
punição do réu. (...) O que não mais se admite é a
concretização da prova da existência do delito unicamente pela confissão - que, no passado, muitos transtornos
já causou, como está registrado pelo célebre caso dos irmãos Naves (...) – ou
por meros indícios, sempre frágeis e inconsistentes para esse tipo de prova
(...).
(...).
39-B. Cautelas na
formação do corpo de delito indireto: a autoridade policial,
ao receber a notitia criminis, não mais sendo possível a realização do exame de corpo de
delito, em face do desaparecimento dos vestígios, ‘deverá, então, certificar-se
da existência de testemunhas do fato investigado, isto é, de
pessoas que o tenham presenciado (...)’ (Rogério Lauria Tucci, Do corpo de
delito no direito processual penal brasileiro)”.
Evidente,
portanto, que não basta uma mera existência ‘formal’ de testemunhas para os fins do artigo 167 do
Código de Processo Penal, sendo absolutamente imperioso,
para os fins legais, que ocorra o concreto suprimento,
ou seja: impõe-se que a prova testemunhal
seja presencial aos fatos.
Apesar de não ser objeto central deste texto, entendemos adequado apresentar algumas
breves linhas sobre
o(s) meio(s) mais adequado(s) para buscar o reconhecimento do referido constrangimento ilegal acima mencionado.
Na hipótese de Defensor atuando desde a fase
de inquérito policial, nada
impede que seja requerido o trancamento do procedimento administrativo por
meio de habeas corpus junto ao magistrado competente, pois se é certo que cabe
ao Estado investigar / denunciar crimes, não menos certo que deve existir o
respeito ao mandamento legal desde o início.
No caso de já existir denúncia
oferecida, o mais correto(e
célere, evitando desnecessário trabalho) será o Magistrado sequer oportunizar
vista à Defesa, rejeitando desde logo a inicial
acusatória, tendo em vista ‘faltar justa
causa para o exercício da ação penal’ (CPP, art. 395,
III).
Se por um absurdo – mas é o que infelizmente ocorre na
prática – o Magistrado receber a denúncia e determinar a citação do Indiciado, perfeitamente
possível a
impetração de habeas corpus perante o Tribunal competente para sanar tal
lamentável ilegalidade.
Se por mais
absurdo ainda
ocorrer prolação de decisão de pronúncia, caberá
à Defesa, conforme o caso, a impetração de habeas corpus ou o recurso em sentido estrito.
Neste ponto, e caminhando para o final deste texto, destacamos ser plenamente
possível a
utilização do writ constitucional citado para o reconhecimento do constrangimento ilegal, desde
que não se faça o
reexame de fatos, mas sim a revaloração da conclusão,
o que é perfeitamente possível e aceito pela jurisprudência (STF, HC
91.585, rel. Min. CEZAR PELUSO – HC
98.197, rel. Min. EROS GRAU – RHC 92.430, rel.
Min. MARCO AURÉLIO).
Sendo assim, se é certo, que é
possível um
processo criminal relativo a homicídio ter prosseguimento sem
um cadáver encontrado, podendo a materialidade ser suprida pela prova
testemunhal, não menos certo que esta última
deve existir de maneira apta e concreta, ou seja, ser presencial
ao fato, sob pena sob pena de desrespeito a expresso mandamento legal (CPP, arts. 158, 167 e 564, III, ‘b’),
e, consequentemente,
faltar justa causa para a persecução penal (CPP, art. 648, I), sanável por meio
de habeas corpus.
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