ARTIGO DO
DIA: Existe homicídio sem o corpo da vítima?
Autor: LUIZ FLÁVIO GOMES
Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, Mestre
em Direito Penal pela USP, Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG e
Co-coordenador dos cursos de pós-graduação transmitidos por ela. Foi Promotor
de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a
2001). Twitter: www.twitter.com/ProfessorLFG. Blog: www.blogdolfg.com.br - Pesquisadora:Christiane de O. Parisi Infante.
Como citar este artigo: GOMES, Luiz Flávio. Existe homicídio sem o corpo da vítima? Disponível
em http:// www.lfg.com.br - 26 de julho de 2010.
Caso o corpo de Eliza Samudio não seja encontrado é possível, mesmo
assim, haver indiciamento dos suspeitos? É possível dar início ao processo
(contra eles)? É possível haver pronúncia? (ou seja: o caso ser remetido ao
julgamento do tribunal do júri). É possível que haja condenação final, pelos
jurados, mesmo não sendo encontrado o corpo da vítima? Há homicídio sem o corpo
da vítima?
Em regra nada disso é possível sem o encontro do corpo da vítima. Em
regra. Excepcionalmente sim (tudo isso é possível). Quando? Quando as provas
indiretas sobre a morte da vítima (sobre o corpo de delito), mais eventualmente
provas indiciárias, forem convincentes.
Histórica e emblematicamente um dos casos mais rumorosos, nesse campo
(não encontro do corpo da vítima), é o da Dana de Teffé , no Rio de Janeiro, no início da década de 60
(século XX). Seu corpo nunca apareceu. Havia acabado de se separar do
embaixador brasileiro Manuel de Teffé Von Hoonholtza. Numa viagem com o
advogado Leopoldo Heitor ela desapareceu. O advogado diz que ela foi
seqüestrada após um assalto. A suspeita pelo desaparecimento recaiu sobre ele.
Ele foi julgado pelo tribunal do júri. Foi condenado num primeiro julgamento e
absolvido no segundo.
Um outro caso paradigmático é o do IRMAOS NAVES (MG), que trataremos mais adiante. No caso DANA DE
TEFFÉ houve absolvição do réu. No caso dos IRMAOS NAVES houve condenação
injusta e absurda, porque a vítima reapareceu. E ainda há casos no Brasil em
que o réu foi condenado mesmo sem o corpo da vítima (POLICIAL EM BRASÍLIA E UM
JUIZ EM SP).
Comparando-se os dois casos ( Eliza e Dana ) notam-se algumas diferenças. Quais? A existência de provas indiretas e
indiciárias no primeiro caso (Eliza), justamente o que faltou no segundo.
Corpo de delito é o conjunto dos vestígios deixados pelo crime. Exame de
corpo de delito é o exame que comprova os vestígios deixados pelo crime. O exame de
corpo de delito pode ser direto (quando o objeto revelador do vestígio é examinado diretamente) ou indireto (CPP, art.
167: Não sendo possível o exame de corpo de delito [direto], por haverem
desaparecidos os vestígios [o corpo da vítima, por exemplo], a prova
testemunhal poderá suprir-lhe a falta.
Por que existe essa regra processual? Para evitar a impunidade . Se essa
regra não existisse bastaria a matar a vítima e fazer desaparecer o seu corpo
(para se garantir a impunidade) (cf. nesse sentido, em linhas gerais, Soraya Taveira Gaya).
No caso do homicídio, em que o vestígio cadáver é
passível de desaparecimento, quer pela ação do tempo (por meio da
decomposição), quer pela conduta do próprio criminoso (v.g. mediante a
incineração do corpo da vítima), permite-se, por isso mesmo, a incidência do
supracitado art. 167 do CPP (AVENA,
Norberto. Processo penal: esquematizado . 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo:
Método, 2010. p. 530).
Aury Lopes Jr. ( Direito processual penal e sua conformidade constitucional . vol. I. 5.
ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 613), a propósito
sublinha:
Situação bastante complexa, e que eventualmente ocupa os tribunais
brasileiros, é a (im) possibilidade de condenação pelo crime de homicídio
quando não se encontra o cadáver da vítima (corpo de delito). A ocultação do
cadáver (muitas vezes levada a cabo pelo próprio autor do homicídio)
impossibilita o exame direto. Contudo, é predominante a jurisprudência brasileira
no sentido de admitir o exame de corpo de delito indireto, consubstanciado em
prova testemunhal suficiente, aliada, em alguns casos, à prova pericial feita
em armas ou vestígios de sangue, cabelos, tecidos etc. encontrados no local do
crime ou até mesmo no carro utilizado pelo réu para transportar o corpo.
O mesmo autor (Aury Lopes Jr., Direito processual penal e sua conformidade
constitucional . vol. I. 5. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p.
615), conclui:
Em suma, concluindo esse tópico, frisamos que, nos
crimes que deixam vestígios, o exame de corpo de delito direto é
imprescindível, nos termos do art. 158. Somente em situações excepcionais, em
que o exame direto é impossível de ser realizado, por haverem desaparecidos os
vestígios, é que se pode lançar mão do exame indireto (prova testemunhal,
filmagens, gravações etc.) nos termos do art. 167 do CPP.
Guilherme de Souza Nucci ( Manual de processo penal e execução penal . 6. ed.
rev., ampl. e atual. São Paulo: RT, 2010, p. 507-510) afirma:
Entendemos não haver a possibilidade legal de se
comprovar a materialidade de um crime, que deixa vestígios, por meros indícios.
A lei foi clara ao estipular a necessidade de se formar o corpo de delito prova
da existência do crime através de exame (art. 158), direto (perito examinando o
rastro) ou indireto (peritos examinando outras provas, que compõem o rastro
deixado; nesta hipótese, até mesmo o exame de DNA, comprovando ser o sangue da
vítima o material encontrado nas vestes do réu ou em seu carro ou casa, pode
auxiliar a formação da materialidade). Na falta do exame de corpo de delito
feito por perito oficial ou peritos nomeados pelo juiz porque os vestígios desapareceram,
a única saída viável é a produção de prova testemunhal a respeito, como consta
no art. 167 do CPP.
Ocorre que a interpretação a ser dada à colheita de testemunhos não pode ser
larga o suficiente, de modo a esvaziar a garantia de que a existência de um
delito fique realmente demonstrada no processo penal. Assim, quando a lei
autoriza que o exame seja suprido por prova testemunhal está a sinalizar que o
crime tenha sido assistido, integralmente ou parte dele, por pessoas idôneas.
Estas, substituindo a atividade pericial, poderão narrar o evento.
Exemplificando, se pessoas presenciam um aparente homicídio, observando que o
réu atirou várias vezes contra a vítima e depois lançou seu corpo de uma enorme
ribanceira, caindo num caudaloso rio e desaparecendo, poderão narrar tal fato
ao magistrado. A prova do corpo de delito se constitui indiretamente, isto é,
através de testemunhas idôneas que tenham visto a ação de matar e, em seguida,
a de sumir com o corpo do ofendido, embora não possam, certamente, atestar a
morte , com a mesma precisão pericial. As probabilidades, nesse caso, estão em
favor daconstituição da materialidade, pois a vítima não somente levou tiros, como caiu de um
despenhadeiro, com pouquíssimas chances de sobrevivência. Não nos parece
cabível, no entanto, que testemunhas possam suprir o exame de corpo de delito,
declarando apenas que a vítima desapareceu, sem deixar notícia, bem como que
determinada pessoa tinha motivos para matá-la.
(...)
Segundo nos parece, jamais a materialidade do crime de homicídio poderia
ter sido formada com a união de vários indícios, todos frágeis, sem qualquer
formação indutiva da existência de tão grave delito. Para a substituição do
exame de corpo de delito, imposto por lei, necessitar-se-ia da prova
testemunhal, que é meio de prova indireto, como determina a lei. Não nos parece
tenham sido obtidos, no caso narrado pelo autor, depoimentos consistentes
comprovando a ocorrência da morte da vítima. Por isso, cremos (...) que a prova
indiciária (meio de prova indireto) é, de todas, a mais frágil para a
composição da materialidade do delito. A lei estipulou que a prova testemunhal
pode suprir o exame de corpo de delito, querendo com isso dizer que o crime ou
fato relevante a ele relacionado, como alguém arrastando o corpo, no caso de
homicídio precisa ter sido visto por alguém, que, então, possa reproduzi-lo em
juízo. Afora essa possibilidade, outras provas carecem de consistência para a
formação da materialidade, gerando dúvida intransponível, merecedora de gerar a
absolvição de qualquer acusado, em homenagem ao mais forte dos princípios
processuais penais: in dubio pro reo .
Anote-se, por fim, a lição de ROGÉRIO LAURIA TUCCI: Embora igualmente
utilizáveis em processo penal, não se prestam, também, à comprovação do corpo de
delito , os indícios , que lato sensu considerados, representam a probabilidade de convicção judicial, mesmo à
falta de qualquer prova direta, inclusive a testemunhal (Do corpo de delito
no direito processual penal brasileiro , p. 190).
Sintetizando: a comprovação da morte da vítima (que constitui a materialidade da
infração) exige prova direta (perícia do próprio corpo). Essa é a regra.
Excepcionalmente, para suprir-lhe a falta (em virtude do desaparecimento), a
lei processual admite a prova indireta (testemunhal). Um terceiro meio sozinho,
isolado (outros indícios da morte: sangue, cabelo da vítima etc.), a lei não
prevê. Mas junto com a prova indireta (testemunhal) pode ser que vários outros
indícios sejam encontrados (e provados). Nesse caso, tais indícios reforçam a
prova indireta. Esse conjunto probatório indireto + indiciário pode alcançar o
patamar de uma convicção que afasta todo tipo de dúvida.
Provas "beyond all reasonable
daudt"
A cultura jurídica anglosaxônica e norte-americana cunhou a expressão "beyond
all reasonable daudt" (para além de toda dúvida razoável). Esse é o
patamar que deve ser alcançado para que se afaste a presunção de inocência (do
acusado). O jogo processual (futebolisticamente falando) começa 1 x 0 para o
acusado (em virtude da presunção da inocência). Somente provas válidas e
convincentes derrubam esse placar. Ademais, não bastam provas que deixam
dúvida. No caso de dúvida o jogo probatório fica empatado (1 x 1). E a dúvida
favorece o réu ( in dúbio pro reo ). Para se afastar definitivamente a dúvida a prova necessita transmitir
convicção razoável (ou seja: a prova precisa expressar uma convicção
"beyond all reasonable daudt" - para além de toda dúvida razoável).
Jurisprudência
1- STJ, HC 110.642 (j. 19.03.2009). Da ementa transcrevo:
(...) ATO INFRACIONAL EQUIPARADO AO DELITO DE HOMICÍDIO TENTADO. (...)
2. Apesar de relevante para a comprovação dos crimes de resultado, a
realização do exame de corpo de delito não é imprescindível para a comprovação
da materialidade delitiva, não podendo sua não-realização impedir a persecução
criminal em juízo. (...)
2- STJ, HC 79.735 (j. 13.11.2007). Da ementa transcrevo:
HABEAS CORPUS . HOMICÍDIO E OUTROS CRIMES. (...)
O exame de corpo de delito, embora importante à comprovação nos delitos
de resultado, não se mostra imprescindível, por si só, à comprovação da
materialidade do crime.
No caso vertente, em que os supostos homicídios têm por característica a
ocultação dos corpos, a existência de prova testemunhal e outras podem servir
ao intuito de fundamentar a abertura da ação penal, desde que se mostrem
razoáveis no plano do convencimento do julgador, que é o que consagrou a
instância a quo.
3- STJ, HC 51.364 (j. 04.05.2006). Da ementa transcrevo:
HABEAS CORPUS . PROCESSUAL PENAL. CRIMES DE LATROCÍNIO E OCULTAÇAO DE CADÁVER. (...)
2. A simples ausência de laudo de exame de corpo de delito da vítima não
tem o condão de conduzir à conclusão de inexistência de provas da materialidade
do crime, se nos autos existem outros meios de prova capazes de convencer o
julgador quanto à efetiva ocorrência do delito, como se verifica na hipótese
vertente.
4- STJ, HC 39.778 (j. 05.05.2005). Do voto do relator transcrevo:
Ademais, não se pode considerar a não localização do corpo da vítima
como falta de um dos elementos essenciais do tipo penal, pois, se assim fosse,
em todos os casos em que o autor praticasse, em concurso com o homicídio, a
ocultação de cadáver, estaria impedida a configuração do próprio delito de
homicídio.
Cabe consignar, ainda, que o entendimento desta Corte é no sentido de
que a prova técnica não é exclusiva para atestar a materialidade do delito, de
modo que a falta do exame de corpo de delito não importa em nulidade da
sentença de pronúncia, se todo o conjunto probatório demonstra a existência do
crime.
5- STJ, HC 30.471 (j. 22.03.2005). Da ementa transcrevo:
(...) ATO INFRACIONAL EQUIPARADO AO CRIME DE HOMICÍDIO. (...)
1 - A condenação está assentada em elementos de convicção existentes nos
autos, não se mostrando o exame pericial indispensável ao reconhecimento da
ocorrência do delito.
6- STJ, HC 23.898 (j. 21.11.2002). Da ementa transcrevo:
(...) TENTATIVA DE HOMICÍDIO QUALIFICADO. (...)
II - O exame de corpo de delito direto pode ser suprido, quando desaparecidos
os vestígios sensíveis da infração penal, por outros elementos de caráter
probatório existentes nos autos, notadamente os de natureza testemunhal ou
documental. (...)
O que está em jogo é a IMPUNIDADE , de um lado, e a possibilidade de ERRO JUDICIAL , de outro.
Historicamente, o caso dos IRMAOS NAVES , em Araguari-MG, é muito emblemático (no que diz
respeito ao erro judicial). Foram condenados injustamente por uma morte que não
existiu. Quinze anos depois da condenação a vítima reapareceu. Nessa altura um
deles já havia morrido dentro da prisão.
Naquele episódio, ocorrido no ano de 1937, tal como esclarece Hélio
Nishiyama, os irmãos Naves chegaram a ser absolvidos duas vezes pelo Tribunal do Júri, porém, após
recurso da acusação, foram condenados a pena de 25 anos e 06 meses de reclusão pelo
Tribunal de Justiça de Minas Gerais (naquela época, o veredicto dos jurados não
era soberano).
Num outro caso, do JUIZ MARÇO ANTÔNIO TAVARES, EM SÃO PAULO , ele foi
acusado de matar sua mulher, desaparecida desde 1997. O corpo jamais foi
encontrado, mas, ele foi condenado pelo Tribunal de Justiça a 13 anos e meio de
prisão, como autor do crime.
No caso Eliza O QUE MAIS PODE SER FEITO? Já existem provas testemunhais. Também já existem
alguns indícios (a vítima esteve no sítio de Bruno, ela foi levada para uma
outra casa onde teria sido executada etc.). Que se pode fazer mais? Provas
periciais. Luzes e reagentes (luminol, por exemplo) podem descobrir manchas de
sangue (não visíveis). Testes de DNA. Provas dos registros telefônicos (não se
trata da interceptação telefônica). Manchas de sangue nos carros. Uso de luzes
forenses para a descoberta de pelos, cabelos, fibras de roupas, impressões
digitais etc.
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